segunda-feira, 4 de maio de 2009

A fragmentação da memória em "Nós que aqui estamos, por vós esperamos"

Crimes, guerras, desastres naturais, a destruição ambiental. A pequenez do homem diante da inevitabilidade da morte sempre despertou temores em todos nós e serviu de tema para inúmeros filmes. O mais recente deles, Presságio (com Nicolas Cage e direção de Alex Proyas), mostra o fim do mundo causado por uma onda de calor que vem do sol, e cujos efeitos sobre a Terra são catastróficos e inevitáveis.

No entanto, parece mais sensato - e urgente - pensar que o fim da humanidade possa ser causado pelos próprios homens; pelo menos, até agora, nossos maiores problemas têm causa em nossas próprias ações. Basta olhar para trás e pensar em nossa história marcada por guerras e milhões de mortos. Nesse ponto da discussão é que se insere o documentário brasileiro Nós que aqui estamos, por vós esperamos. A obra, dez anos após seu lançamento, continua atual. Talvez o cerne de nossos problemas seja justamente a banalização da morte e a desvalorização da vida, que retira o sentido de todas as coisas humanas; talvez, também, precisemos atribuir maior importância ao inconsciente de Freud para compreender nossa própria realidade. Seja lá como for, essas são questões discutidas com beleza e sensibildiade em Nós que aqui estamos, por vós esperamos.

Com um orçamento de 140.000 reais (dos quais, mais da metade foi gasta em pagamentos de direitos autorais) e mais de 2.000 horas de edição, foi lançado em 1998 o documentário brasileiro Nós que aqui estamos, por vós esperamos. Dirigido por Marcelo Masagão e baseado no livro A era dos extremos, do historiador inglês Eric Hobsbawm, a obra mostra os contrastes e as controvérias do período delimitado – e profundamente marcado – pelas duas grandes guerras mundiais: o “breve século XX”.

O financiamento para viabilizar o documentário veio de uma bolsa concedida a Masagão pela Fundação MacArthur, três anos antes da realização da obra. Produzido a partir de imagens verídicas do século XX, localizadas em acervos de várias partes do mundo, Nós que aqui estamos, por vós esperamos contou com um processo de edição bastante peculiar. As inúmeras imagens ficam justapostas, sem que haja locução ou depoimentos. O costura das cenas fica por conta da música melancólica e penetrante de Wim Mertens.

O documentário questiona a tradicional separação entre documental e ficcional e constróe-se sobre uma estrutura narrativa nada convencional. Isso porque, na obra, o diretor cria o fio narrativo a partir de recortes biográficos – reais, mas também, ficcionais – de pequenos e grandes personagens, a partir dos quais é possível contar a história do século XX. Como filme-memória, Nós que aqui estamos, por vós esperamos realmente mergulha fundo na fragmentação da memória humana. Além disso, Masagão pretende discutir a banalização da morte e, consequentemente, da vida durante o período retratado. Tanto é assim que a imagem que encerra o documentário (a única captada pelo diretor) mostra o pórtico de cemitério localizado na cidade de Paraibuna, no interior de São Paulo. No pórtico, lê-se a enigmática e profética frase “nós que aqui estamos, por vós esperamos”, que dá nome ao filme.

Narrativa não convencional

Nós que aqui estamos, por vós esperamos apresenta uma estrutura bastante atípica em relação à grande maioria dos documentários. Para começo de conversa, o filme de Marcelo Masagão não possui locutor ou depoimentos. A narrativa, assim, é toda composta por imagens – muitas vezes desconexas -, acompanhadas de breves legendas. A unidade do filme é dada pela música de Win Mertens. Marcelo Masagão (no site oficial do filme) justifica assim essa escolha: “Colocando só música, ruídos e silêncios, procurei não tapar o buraco do desconhecido, do não dito, do não que talvez seja o sim, ou, quem sabe, o talvez.”

As fotografias que se sucedem na tela não respeitam uma lógica de ordenação cronológica, espacial ou temática, de modo que elementos e personalidades distintos aparecem, por vezes, simultaneamente. Essa organização do filme (basicamente, por justaposição de imagens), que dispensa recursos de ancoragem no real, produz uma narrativa fragmentada, não-linear, que deixa aberto o campo de subjetividades diversas.

Assim, Nós que aqui estamos, por vós esperamos se compõe de uma sucessão não-linear de imagens verídicas. Tais imagens são evidências documentais e remetem a uma verdade objetiva. Personalidades e acontecimentos conhecidos dividem a cena com outros anônimos, funcionando como pontuações (esparsas e imprecisas) de tempo, lugar e contexto. Entretanto, cada personagem e fato anônimo registrado nas fotografias recebe, no filme, uma existência ficcional. Todos aqueles rostos desconhecidos recebem (nas legendas) caracterizações como nome ou profissão, de modo a lhes conferir uma identidade compatível com as evidências reveladas pela foto. Logo, evidências documentais relacionam-se intimamente com recursos ficcionais. Duas formas de verdade atravessam o filme de Marcelo Masagão: uma verdade histórica, invocada pelas evidências documentais, e uma verdade narrativa, construída pelos próprios recursos sobre os quais se estrutura a narrativa do documentário.

Nesse sentido, Nós que aqui estamos, por vós esperamos representa um questionamento da tradicional oposição entre documentário e ficção. Ele costura elementos ficcionais a recursos documentais, e daí extrai seu valor. Nas palavras de Rosana de Lima Soares ([N]as bordas do cinema: o fator fake em Nós que aqui estamos, por vós esperamos), o documentário de Marcelo Masagão pode ser definido como “uma retomada fake do cinema-verdade e dos documentários”. Ainda segundo ela: “Mais do que oscilar entre uma postura mais subjetivista ou mais objetivista, Masagão problematiza a própria dicotomia tradicionalmente estabelecida entre sujeito e objeto, definindo seu longa-metragem como um filme-memória.”

A banalização da morte

“Resolvi discutir um dos fatos que mais me chamam a atenção neste final de século, isto é a banalização da morte e, por correspondência direta, a banalização da vida” é o que afirma Marcelo Masagão em relação aos seus objetivos para produzir Nós que aqui estamos, por vós esperamos.

A imagem que encerra o documentário – o pórtico de cemitério filmado no interior de São Paulo com a inscrição “Nós que aqui estamos, por vós esperamos” – demonstra a fragilidade da vida humana, sujeita à morte inerente à existência de todos. Os mortos do século XX esperam por nós que, fatalmente, encontraremos nosso destino final. A incrição sugere, também, a transição temporal entre passado e futuro.

Nesse sentido, a criação ficcional que cada personagem anônimo recebe consiste em um apelo à sensibilidade do público. Quando aquelas pessoas presentes nas fotos são recriadas, segundo uma nova identidade, intensifica-se a idéia da fragilidade da vida humana frente à banalização da morte. Uma vez que cada uma daquelas identidades é fictícia e, mesmo assim, soa extremamente coerente e possível de ser real, fica evidente que qualquer um poderia estar no lugar de cada uma daquelas pessoas e, portanto, suscetível a toda a barbárie do século passado.

A esse respeito, Marcelo Masagão acredita que “na morte, não interessa o milhar, mas a unidade-próxima. Ouvir notícias de milhares de mortos na Guerra da Bósnia, na fome africana ou no desastre de avião, parece sonorizar pouco e só acaba tendo dimensão real se o morto em alguma dessas catástrofes for meu parente ou amigo”.

O papel da memória

A narrativa fragmentada, turbulenta e não-linear de Nós que aqui estamos, por vós esperamos parece invocar a desordem dos sonhos e da memória. As ligações desconexas de imagens suscitam a fragmentação do sujeito e a ação de seu inconsciente. Aliás, a referência a Freud aparece já na primeira frase do filme: “O historiador é o rei; Freud a rainha”.

É como se o documentário nos dissesse que a História se perde e se constrói nos vãos nebulosos da memória e do esquecimento, e que a ação do ser humano só se explica de forma plena em função de seu inconsciente. O historiador representa a imagem do rei, responsável por toda a ordenação dentro de seu reino, que é a História. Entretanto, assim como a própria História comprova, a ação do rei não pode ser compreendida sem que se leve em conta as posições de sua esposa. A rainha pressiona o rei, assim como o historiador precisa considerar a influência do inconsciente sobre os homens para poder entender a História.

A própria cena de abertura do filme, em que imagens e palavras vão aparecendo sob nuvens e névoa, reforça a ideia de que a obra toda parece surgir dos abismos da memória. É o que diz Nicolau Sevcenko: “Com base na história e na psicanálise, Marcelo Masagão compôs um complexo mosaico de memórias do século XX. Seu recurso à justaposição de imagens e seqüências fragmentadas, ao invés de uma narrativa contínua e linear, capturou o âmago mesmo desse tempo turbulento.”

Desse modo, Nós que aqui estamos, por vós esperamos traz a idéia de que toda a realidade é “narrativa”. As ficcionalizações dos pequenos personagens, a noção da construção da História segundo mecanismos inconscientes e fragmentados de memória e esquecimento, a própria construção do ser humano (que na realidade, não é sujeito total de si, mas manifestações de seu inconsciente) – tudo colabora para a construção narrativa da realidade, em que elementos factuais confundem-se a outros ficcionais.

3 comentários:

  1. É um documentário que te faz pensar... O engraçado é que é um documentário brasileiro, mas são feitas poucas referências ao nosso país. Tudo bem que ele não participou de guerras, mas também tem grandes problemas...

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir

 
Simple Proff Blogger Template Created By Herro | Inspiring By Busy Bee Woo Themes Distribuido por Blog templates